Apresentação
Descobri
o poeta Varneci Nascimento, a “Autarquia do Cordel”, na internet, graças ao meu
interesse pelo cordel. Me divertia com seu bom humor. Para refletir e gargalhar foi o seu primeiro livro que li. Seguindo
o mesmo caminho, o presente livro também traz poemas que passeiam por entre a
dor e o humor, a reflexão e a alegria.
Circula
por diversos cenários, onde tragédias, dramas e comédias se alternam,
dialogando com temas como: ecologia, preconceito ou cenas do cotidiano das
grandes cidades. Questionei-o se este paralelo era recorrente em sua obra.
Respondeu-me que não. Mas ao iniciar a leitura do cordel de sua autoria,
chamado O martírio de uma mãe pelo filho
drogado, de 2011, qual não foi a minha surpresa ao ler a primeira estrofe:
Nossa vida é um teatro
Com espetáculo diverso
É drama de riso e lágrima
Onde o ser humano, imerso
Neste palco fascinante,
Desenha seu universo.
No
terceiro verso se lê: “É drama de riso e lágrima”. Aqui se anunciava um caminho
que ainda estaria por vir, embora ele ainda nem soubesse disso.
Neste
livro, ele trata de assuntos atualíssimos que lhe ferem fundo na alma, como o
fato de ser “migrante”. Aqui ele se posiciona em lados opostos: ora, fala do
preconceito, neste caso, contra o nordestino oriundo da zona rural, na cidade
grande; ora fala da aculturação deste mesmo indivíduo que apaga sua própria
história, na vã tentativa de ser aceito nessa terra estranha e rude, inclusive
num mesmo poema, como poderemos ver em A
rudeza terrível da cidade, que diz:
Carregava o
mais simples coração,
Mas, assim que
notaram meu sotaque,
Padeci como
vítima de achaque
Pelos membros
da nova região.
Inclusive,
pessoas do meu chão,
Por vergonha,
escondem sua cultura,
Pois abraçam a
péssima postura
De negar sua
própria identidade.
A rudeza terrível da cidade
Tem tirado meu resto de ternura.
Também
nos mostra homenagens a pessoas que lhe foram e são especialmente caras, uma
delas, sua própria mãe, nos dando conta da corajosa batalha frente a doenças, descrita
no poema Da fortaleza ao declínio e
as perdas de Gregório Nicoló, proprietário da Editora Luzeiro que, enxergando seu
talento como cordelista, lhe estendeu a mão, levando-o para trabalhar a seu
lado, e por fim, seu querido Tio Belo, com quem mantinha uma relação filial e
que perdeu a luta para a covid 19. São poemas escritos com a tinta do afeto e
da gratidão.
Caminha com
desenvoltura por temáticas de cunho político-social e ecológicas (nas quais
alterna reflexões e humor, inclusive num mesmo poema, como é o caso de Pare de chupar e aqui não darei nenhuma dica
do que está por vir. Leia e tire suas próprias conclusões). Trata dos desastres
ambientais de Mariana e Brumadinho (ambos em Minas Gerais), como de fato o são:
crimes ambientais, e não acidentes como a grande mídia entendeu de chamar.
No
humor, em dados momentos, me remeteu às chanchadas brasileiras ou aos
espetáculos de circo que passavam na minha, outrora, pequena cidade sertaneja.
Um humor sem amarras ou qualquer compromisso com o politicamente correto. Como
é o caso dos poemas Sexo segundo as
profissões e Todo velho quando mija.
Mas é na crítica social que sua poesia se mostra grande, certeira. Um discurso
forte, politizado, ao lado do oprimido e contra toda ordem de repressão e
autoritarismo.
Em dados momentos,
os poemas se travestem em denúncias, como é o caso de Feminicídio, Invisíveis do
mundo e Filmem mesmo os professores.
São 30 poemas escritos em linguagem cordelística. O autor presenteia os
estudiosos e pesquisadores do cordel com uma rica e agradável aula, mostrando
diversas formas estróficas: sextilhas, setilhas, oitavas, nonas, décimas, em
redondilhas maiores ou decassílabos, com ou sem mote (se apropriando de formas
usuais da cantoria de viola), como podemos ver de modo específico numa setilha
com mote no primeiro verso e numa forma irregular com 12 versos, contendo um
mote de 4 linhas, satisfazendo o mais exigente dos leitores.
Destaco
mais dois poemas: o que dá título à obra, Entre
lágrimas e sorrisos, cujo cenário principal são as salas e enfermarias dos
hospitais lotados; e as redes de solidariedade que levam o pão do corpo e da
alma a tantos esquecidos pela sociedade. Onde poderemos ler:
(...)
Vê-se em local de tristeza,
Gente doando
alegria.
Levando o pão para
a mesa
De quem não tem,
todo dia.
E
O tempo, que nem fala de lágrimas nem
de sorrisos. A palavra “tempo” se repete em praticamente todas as linhas, imprimindo
ritmo ao poema. O ritmo do relógio. O ritmo
do tempo. O poeta faz uso da anáfora de modo a nos prender a estes versos, nos
dando vontade imediata de decorá-los, para sair declamando e fazendo bonito
pelos saraus da vida. Leiam, se possível, em voz alta:
O tempo finge dar
tempo,
O próprio tempo lhe
toma.
Seu tempo é
subtraído
Na conta que o
tempo soma.
O tempo bota o
tempero,
No mínimo ou no
exagero.
O tempo põe seu
aroma.
É
um poema forte como uma pedra de amolar e leve como uma pluma de rosa-cera,
levada pelo vento quente neste sertão de meu Deus.
Desejo
que o leitor viva bons momentos na companhia destes poemas.
Anita
Alves
Arquiteta,
nordestina e sertaneja, amante dos livros, dos cordéis e de toda manifestação
cultural vinda do povo.
Caicó,
RN, São João de 2020
Capa de Rodrigo Eli